<>Das negações.


Não era fácil. E por não ser fácil tornava-se irresistível. Era todo o avesso dos outros todos, normais e anormais de plantão.

Superou tiros, picos, balas, experiências homossexuais e brigas apaixonadas. Superou sua própria identidade até que um dia ela apareceu grávida.

Mas antes disso já havia passado por crises, crises ping pong de vai e vem que nunca davam em nada. Foi no meio dessas crises que ela engravidou.

Ela não, quem engravidou foi a outra. Todos eram a favor da vida, devidamente vegetarianos, e optaram por não abortar. Os 3 escolheram a vida.

Mas para ela, era como passar perto da morte mais uma vez. Aquela historinha de ser feliz e infeliz alternadamente não funcionava mais. Pra outra sim, mas não para ela.

Ele não vem ao caso. Porque ele só existe dentro dela, e num pedaço da outra que crescia todo dia até estourar em forma de barriga pontuda no horizonte.

Foi nesse ponto que começou a desistir, e aos poucos desabrochando nós, que eram feitos na garganta, de carne de gente e de gastrite.

Dependia tanto daquele sentimento amorfo que quando não o vivia era como dormir. Dormir acordar e não lembrar de nada.

Esperava em vão nas saídas de todos os lugares, esperava no ônibus, na escada, num elevador. Entorpecia-se com música alta que saia de dois fones velhos.

Quando a decisão veio ao mundo, tomou-a como sinal. Era o fim. Nem que fosse por causa daquele quarta pequena pessoa que não fazia parte da equação.

Aquela que não era ela carregava em si um pedaço de toda sua vida. O maior pedaço, como uma perna, que por algum erro foi parar em outro lugar. Ela era dele desde sempre, mas ele nunca fora dela. Vivia dentro dela, mas semiou em outra.

Melhor assim. Longe. Sem culpa. Mas era tão sua aquela criança, impossível evitar a fração, ela, ele, a outra e mais um. Aquilo era uma soma.

Amargava a dor sozinha de uma vida que desaguou em lugar nenhum, que não deu frutos. Uma grande espera de nada, que foi dar em outra. Outra que não ela. Ele dentro.

Aceitar parecia a solução mais sabia, porém a negação era o caminho mais fácil para sua felicidade momentânea. Negou tudo. Até enlouquecer, tirar o telefone do gancho e parabenizar a outra por estar em seu lugar.

Saudou a grande vida que vinha para mudar a sua, que era a luz, que mesmo não tendo vindo dela poderia salva-la.


[pura ficção]

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