Frio, frio, frio.
A solidão acompanha.
Mas isso qualquer hora passa, e se não passar, pelo menos não mata.
Pra continuar com a saga de contos, pois não paro de escrever um minuto...segue-se mais um, a quem interessar.

***

Sempre a mesma meia calça de aranhas. Os insetos pareciam devorá-la viva, uma vez que a velhice é uma doença. Porém não lhe comiam a pele, mas sim a alma.
Divorciada. Após 25 anos de tortura continua, dois filhos, uma aposentadoria e uma tal outra mulher que o marido resolveu assumir depois de velho.
E aprendeu a cozinhar, a passar e lavar. Mudou hábitos antigos, perdeu amigos, mudou duas vezes de casa, criou os filhos, fez uma pequena biblioteca no quarto dos fundos.
Conhecia a solidão de dormir sozinha. Mesmo quando não estava. Todos os cremes anti ruga, anti celulite, anti idade, anti depressão, não funcionaram com ela. Nem a natação aos vinte, nem a ginástica aos trinta, a caminhada aos quarenta, a yoga aos cinqüenta. Nada.
Continuo padecendo da doença que acaba com os tecidos. E tinha tanto medo, tanta insegurança. Era uma criança velha.
No frio fazia uma barulho estranho, como os pombos. Algo como prurururur ou pruuuuu, os barulhos são difíceis de descrever. Ainda mais os de pombos.
Pois bem, no inverno, coaxava. (mas tenho quase certeza que quem coaxa são os sapos. Ou os patos?) No inverno, imitava pombos. E se vestia de acordo.
Não! Com penas não. Vestia-se de acordo com o frio. Gorro, lenço, bolsos, cachecol, e casaco 7/8.
Na bolsa, Sorine (remédio para desobstrução das vias nasais, que causa dependência). Três pacotes de lenços de papel com folhas duplas (os de folha única sempre rasgam e fazem sujeira), carteira, celular (que nunca toca), bolinhas (famosas anfetaminas), um bloquinho de notas e uma lapiseira grafite 2B 0.9.
Certo dia decidiu acabar com aquilo tudo. Queimou um a um os livros de poesia que analisara outrora. Junto deles o único diploma que conquistou em vida. Depois todas as cartas do primeiro namorado, do segundo, do terceiro, do marido. Do ex-marido.
As fotos do tempo que seus peitos ainda eram peitos, e que sua boca não era um conjunto de pregas.
Enfim a meia calça, a única transgressão que se permitia depois de anos encruada.
Vestiu-se de acordo com o frio. Declamou a lagartixa, de Álvares de Azevedo, colocou o cachecol, os remédios na bolsa, tomou um copo d’água e saiu.
Num domingo, frio e sol, caminhou tranqüilamente pelo calçadão da praia. Pensou nas viagens que não fez, nas drogas que nunca usou, nos filhos que teve. Pensou na morte. Depois parou e pensou na vida.
Voltou para casa. Tirou a cachecol. Naquele domingo não tomou o remédio para gastrite, nem o da artrite, não tomou a anfetamina, nem sequer o café que sempre tomava depois do almoço.
Deitou na cama e sentiu o corpo frio, as deformações que o tempo causara, as dores que eram amenizadas por tantos remédios. Lembrou das aranhas, símbolo materno na psicologia Jungiana, sentiu falta da sua mãe. Lembrou-se mais uma vez que era mãe.
Calçou um par de meias de lã e esperou o telefone tocar. Não tocou.
Adormeceu, e como em diversas noites, implorou para não acordar.
Às sete da manhã de segunda-feira tomava seu café, e esperava o comercio abrir para comprar um novo par de meias-calças.

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