Menininha petulante. Ele me descreveria assim. E quando fosse para me irritar me chamaria de normal porque sabia que lutava do fundo do estômago para ser diferente.
A diferença não está na cor de cabelo, ele diria, acendendo um cigarro na bituca do outro. A diferença está nas atitudes.
E quando eu insistisse em alguma filosofia zen, afirmaria que para ser aquilo teria que deixar de ser eu. Ou teria que cortar minha língua fora.
Então acenava para o ônibus que virava a esquina e nunca sentava ao meu lado.
Só uma vez, mas tenho certeza que foi para me afrontar, para provar que ele podia sentar ali, mas eu não.
Nunca ria das minhas piadinhas e sempre saia nas apresentações dos meus trabalhos. Qualquer tipo de aproximação da minha parte era encarada com olhares de desaprovação por cima dos óculos.
E passaram-se quatro anos assim. Risos nervos no ponto de ônibus e uma noite com sorvete. Não era nada além daquilo mesmo que o era, mas me fazia refletir sobre as inúmeras bobagens que falava.
Quando dava trela andava em círculos e soltava uma ou duas frases para me cutucar. Quando eu pensava nele, todo dia às vezes não, era só pra confrontar o que faltava em mim. Enquanto eu tinha cabelos coloridos, ele variava nos tons de branco preto e cinza.
E a tensão entre nós já fora de toda natureza, agora se resumia só em tensão.Uma tensão provocada por pólos tão opostos que não podem fazer outra coisa além de tencionar.
Como uma tendinite irritante que você convive por falta de opção.
Prefira pensar que ele não me via assim, que me via petulante, mas fundamental na sua reflexão. E que sentiria a minha falta depois que eu fosse embora.
Porque eu estava fadada a ir embora. Como ele mesmo adorava dizer, começo meio e fim, sozinho como nascemos e morremos e seremos marcantes até na morte e até que a morte nos separe.
Mas a verdade é que me esqueceria, ou lembraria periodicamente quando alguém fizesse algum comentário bobinho sobre não comer carne. Diria que estudou com uma menininha petulante, que se contorcia e tinha a voz estridente e era tudo que lembrava.
Só lembraria de verdade quando desse uma aula ruim, e quando se achasse incompetente. Mas então esqueceria novamente porque não precisava da lembrança nem do mundo para celebrar suas falhas.
Acenderia um cigarro e esqueceria mais uma vez. Mas eu não. Eu lembraria, com falhas e imperfeições toda vez que pegasse o quarenta ou o cinqüenta e três num ponto qualquer.
E nunca mais chamaria alguém de poeta, porque não o é...e quando lesse Cervantes e tentasse terminar os livros de cabeceira que não conseguia.
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